sábado, 30 de janeiro de 2010

Leibnitz e a transcendência do amor na Polinésia


por Roberto Munhoz

Queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu e tudo o que se sucedeu, do

preparo do banquete macabro ao extermínio calculado, é a mais pura das

verdades, da qual não há o que tirar ou por. Nos dias seguintes,

vigiei. Por precaução, renovei a dose do preparado letal, mas a

notícia entre as baratas deve ter corrido mais rápida do que elas

próprias. Os insetos não voltaram!


Vim, espargi e venci. Simples assim.


Quem dera!


Não conseguia livrar-me do costume de examinar frestas, de abrir

gavetas com cuidados extremados, da lembrança de quando,

inesperadamente, algo se movia dentro de meus sapatos, tentando

escapulir entre os dedos. Dormia um sono agitado, o mais leve

farfalhar das cortinas fazia-me levantar sobressaltada, com o chinelo

em riste, procurando movimentos suspeitos na penumbra. A repulsa das

baratas continuou impregnada em mim, na minha alma!

Certa noite, após achar ter ouvido um roer na prateleira, o sono

custou a vir. Examinei cuidadosamente os vãos entre os livros,

principalmente na seção reservada à Kafka. Nada! Antes de voltar à

cama, pesquei aleatoriamente um volume, “Novos ensaios sobre o

entendimento humano”, de Leibniz, que teimo grafar “Leibnitz”, com

t”, por causa da uma antiga professora de filosofia que... bem, essa

é outra história, talvez a próxima da série e que, portanto, deixo

para depois. O importante é que resolvi ler “Novos ensaios” na

tentativa de entender as disposições da alma que conduzem o agir

presente. Queria mesmo era livrar-me das baratas ocultas, rastejantes

em meu inconsciente e que me punham de sobreaviso nas pontas dos pés

dentro de minha própria casa.


Esforcei-me em compreender a definição filosófica do sábio acerca da

contingência humana’, pois que vinha mergulhada numa daquelas, mas o

sentido lógico escapou-me por completo. Talvez o empirismo de Locke

fosse mais útil para mim. Já a noção de ‘ação espontânea’ – quando o

princípio de determinação está no agente, não no exterior deste, e a

ação depende, em última instância, do indivíduo – captei de pronto

usando puramente a intuição.


Oh, Deus! Filosofar altas horas da noite por causa de reles baratas?!

Eu as podia sentir enquanto lia, estavam ali, dentro de mim, não no

exterior, em ação espontânea, vasculhando as tubulações da minha

imaginação.


Quando cheguei ao capítulo sobre ‘reflexão’, um fato cristalino saltou-

me aos olhos. Dizia o texto do célebre alemão: “o que diferencia o

animal humano dos demais é a capacidade de reflexão, de pensar a ação,

e de saber por que agem”. Bom, realmente não fazia a mínima de por que

vinha agindo daquela maneira em relação aos fantasmas das baratas

friamente exterminadas. Afinal, teria eu perdido o último elo que me

distinguia dos animais?


Fechei o livro, desconsolada e confusa, invadida por uma onda de

angustia ainda maior do que a angustia que sentia ao ver insetos. Meus

dedos correram febris para o controle remoto da TV, a única chance que

tinha de escapar naquele momento da realidade opressora do quarto...

claro, excluindo a possibilidade de servir-me dum coquetel mortal à

base de farinha e gesso, que sabia preparar tão bem.

Apertei seguidas vezes a tecla ‘V’, escalando canal a canal, esperando

sintonizar algo incongruente que pudesse ao menos distrair-me um

pouco, o que não tardou: a imagem dum homem barbudo falando sobre

certo quadro abstracionista surgiu; sua desenvoltura num traje formal

pretendia convencer o leigo de que a obra era mais simples do que se

supunha enquanto ele próprio, mais complexo do que aparentava.


Este quadro – dizia o homem - titulado UPWARD, de 1929, como o nome

diz, representa a transcendência da matérial... tema recorrente na

fase pré-septuagenária de Kandinsky...”


Meu cérebro exausto puxou pela memória: Kandinsky, o célebre pintor

russo naturalizado francês, o “pai da abstração”. Encarei a UPWARD na

tela da TV; a pintura exibia um misto de chave e fechadura e que, sem

dúvida, não era nem uma coisa, nem outra. Imaginei-a virada de cabeça

para baixo... não ficaria, assim, tão mal.


Quando pareço idiota apenas por distração sou insuportável; é também

sinal da supremacia do cansaço sobre a mente, que teimava manter-se no

comando. Provavelmente o significado da pintura, como dito, era

exatamente aquele, a ‘transcendência da matéria’; para mim, no

entanto, significou a transcendência do estado de vigília para o do

sono.


O programa de TV fez uma pausa, um ligeiro intervalo comercial,

suficiente para que eu saísse em busca de Eurídice no reino de Hades

embalada pelos acordes de Orfeu.


Meus olhos reviraram lentamente, com certa brandura até, enquanto a

vinheta sussurrava a próxima atração televisiva: ‘Amor na Polinésia’.

Algo relacionado à vida marinha no arquipélago ou à lua de mel nos

resorts das ilhas?


Leibnitz versus Locke, Liberdade versus... determinação...

contingência... espontaneidade... reflexão... minha reflexão turvou-

se... não sabia dizer se era humana... ou animal... o importante é

que... já não importava...


Naquela noite, depois de muitas, muitas outras, não pensei em baratas,

mas apenas em Leibnitz e a transcendência do amor na Polinésia.


(esse conto foi enviado pelo participante Roberto Munhoz, depois do desafio que lançamos no último encontro. Deveriam criar uma cena teatral, ou outra versão para o conto "A Quinta História" de Clarice Lispector. Não sei porque o blog deixou ele com as linhas e frases cortadas. Roberto, tentei de várias formas deixar igual era mais o blog só tá aceitando ele assim. Mas até que ficou interessante, parece que está em versos)

Um comentário:

Em Quadrinhos disse...

Realmente, Celso, o entendimento do texto não foi prejudicado pelas quebras de linhas ocasionais. Obrigado pelo post.