Queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu e tudo o que se sucedeu, do
preparo do banquete macabro ao extermínio calculado, é a mais pura das
verdades, da qual não há o que tirar ou por. Nos dias seguintes,
vigiei. Por precaução, renovei a dose do preparado letal, mas a
notícia entre as baratas deve ter corrido mais rápida do que elas
próprias. Os insetos não voltaram!
Vim, espargi e venci. Simples assim.
Quem dera!
Não conseguia livrar-me do costume de examinar frestas, de abrir
gavetas com cuidados extremados, da lembrança de quando,
inesperadamente, algo se movia dentro de meus sapatos, tentando
escapulir entre os dedos. Dormia um sono agitado, o mais leve
farfalhar das cortinas fazia-me levantar sobressaltada, com o chinelo
em riste, procurando movimentos suspeitos na penumbra. A repulsa das
baratas continuou impregnada em mim, na minha alma!
Certa noite, após achar ter ouvido um roer na prateleira, o sono
custou a vir. Examinei cuidadosamente os vãos entre os livros,
principalmente na seção reservada à Kafka. Nada! Antes de voltar à
cama, pesquei aleatoriamente um volume, “Novos ensaios sobre o
entendimento humano”, de Leibniz, que teimo grafar “Leibnitz”, com
“t”, por causa da uma antiga professora de filosofia que... bem, essa
é outra história, talvez a próxima da série e que, portanto, deixo
para depois. O importante é que resolvi ler “Novos ensaios” na
tentativa de entender as disposições da alma que conduzem o agir
presente. Queria mesmo era livrar-me das baratas ocultas, rastejantes
em meu inconsciente e que me punham de sobreaviso nas pontas dos pés
dentro de minha própria casa.
Esforcei-me em compreender a definição filosófica do sábio acerca da
‘contingência humana’, pois que vinha mergulhada numa daquelas, mas o
sentido lógico escapou-me por completo. Talvez o empirismo de Locke
fosse mais útil para mim. Já a noção de ‘ação espontânea’ – quando o
princípio de determinação está no agente, não no exterior deste, e a
ação depende, em última instância, do indivíduo – captei de pronto
usando puramente a intuição.
Oh, Deus! Filosofar altas horas da noite por causa de reles baratas?!
Eu as podia sentir enquanto lia, estavam ali, dentro de mim, não no
exterior, em ação espontânea, vasculhando as tubulações da minha
imaginação.
Quando cheguei ao capítulo sobre ‘reflexão’, um fato cristalino saltou-
me aos olhos. Dizia o texto do célebre alemão: “o que diferencia o
animal humano dos demais é a capacidade de reflexão, de pensar a ação,
e de saber por que agem”. Bom, realmente não fazia a mínima de por que
vinha agindo daquela maneira em relação aos fantasmas das baratas
friamente exterminadas. Afinal, teria eu perdido o último elo que me
distinguia dos animais?
Fechei o livro, desconsolada e confusa, invadida por uma onda de
angustia ainda maior do que a angustia que sentia ao ver insetos. Meus
dedos correram febris para o controle remoto da TV, a única chance que
tinha de escapar naquele momento da realidade opressora do quarto...
claro, excluindo a possibilidade de servir-me dum coquetel mortal à
base de farinha e gesso, que sabia preparar tão bem.
Apertei seguidas vezes a tecla ‘V’, escalando canal a canal, esperando
sintonizar algo incongruente que pudesse ao menos distrair-me um
pouco, o que não tardou: a imagem dum homem barbudo falando sobre
certo quadro abstracionista surgiu; sua desenvoltura num traje formal
pretendia convencer o leigo de que a obra era mais simples do que se
supunha enquanto ele próprio, mais complexo do que aparentava.
“Este quadro – dizia o homem - titulado UPWARD, de 1929, como o nome
diz, representa a transcendência da matérial... tema recorrente na
fase pré-septuagenária de Kandinsky...”
Meu cérebro exausto puxou pela memória: Kandinsky, o célebre pintor
russo naturalizado francês, o “pai da abstração”. Encarei a UPWARD na
tela da TV; a pintura exibia um misto de chave e fechadura e que, sem
dúvida, não era nem uma coisa, nem outra. Imaginei-a virada de cabeça
para baixo... não ficaria, assim, tão mal.
Quando pareço idiota apenas por distração sou insuportável; é também
sinal da supremacia do cansaço sobre a mente, que teimava manter-se no
comando. Provavelmente o significado da pintura, como dito, era
exatamente aquele, a ‘transcendência da matéria’; para mim, no
entanto, significou a transcendência do estado de vigília para o do
sono.
O programa de TV fez uma pausa, um ligeiro intervalo comercial,
suficiente para que eu saísse em busca de Eurídice no reino de Hades
embalada pelos acordes de Orfeu.
Meus olhos reviraram lentamente, com certa brandura até, enquanto a
vinheta sussurrava a próxima atração televisiva: ‘Amor na Polinésia’.
Algo relacionado à vida marinha no arquipélago ou à lua de mel nos
resorts das ilhas?
Leibnitz versus Locke, Liberdade versus... determinação...
contingência... espontaneidade... reflexão... minha reflexão turvou-
se... não sabia dizer se era humana... ou animal... o importante é
que... já não importava...
Naquela noite, depois de muitas, muitas outras, não pensei em baratas,
mas apenas em Leibnitz e a transcendência do amor na Polinésia.